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ARTETERAPIA: SUPERANDO CRISES E FORTALECENDO A AUTOESTIMA

 

por Maria Cristina de Resende

Fotografia de arquivo atelie.LOCUS.


O texto a seguir traz reflexões a partir da leitura e tradução [1] do livro Handbook of Art Therapy, de Cathy A. Malchioldi e se refere a Parte IV: Clinical Applications with Adults, capítulo 21:  Art Therapy with Adults with Severe Mental Illness, de Susan Spaniol. 


Se você está chegando agora por aqui, leia também a parte 1: ARTETERAPIA: AUTETICIDADE, CRIATIVIDADE E REABILITAÇÃO.

https://arteparaterapia.blogspot.com/2024/11/handbook-of-art-therapy-leitura.html


Boa leitura,

Flávia Hargreaves

Coordenadora dos projetos arte.para.terapia e ateliê.locus.


Handbook of Art Therapy – Leitura Comentada – Parte II

ARTETERAPIA: SUPERANDO CRISES E FORTALECENDO A AUTOESTIMA

por Maria Cristina de Resende

 Revisão: Erika Kohler


Ao longo de alguns anos de estudos sobre Arteterapia e Psicologia muitas questões me atravessaram a respeito da bibliografia desta área que me levaram, junto com minha parceira de trabalho Flávia Hargreaves, a buscar outras fontes fora do Brasil. Ao abrirmos este caminho fomos apresentadas ao Handbook of Art Therapy, ou, Manual de Arteterapia, que muito contribui para meus estudos tanto na área da Arteterapia quanto da Psicologia.

O estudo a seguir é resultado em especial do capítulo 21 que fala sobre Art Therapy with Adults with Severe Mental Illness – Arteterapia com Adultos com Doenças Mentais Graves, de Susan Spaniol, passando pela tradução livre e apontamentos sobre hospitalização e atendimentos pós crise a partir da minha prática profissional. Nesta trajetória, trabalhei por um tempo na Casa das Palmeiras onde tive a oportunidade de me aproximar de pacientes psicóticos, entretanto, minha experiência clínica foi construída e estabelecida majoritariamente com sujeitos depressivos, bipolares e ansiosos, além da clínica da Saúde da Mulher com toda a sua complexidade.


Hospitalização

Quando pensamos em hospitalização devemos ter em mente que o estado agudo da crise depressiva, ansiosa ou esquizofrênica impossibilita o indivíduo de realizar o tratamento em casa uma vez que o sofrimento/instabilidade psíquica pode levá-lo à perda do critério de autogestão em saúde além de poder ocorrer risco iminente à própria vida ou de outrem, logo, é uma medida emergencial quando nada mais pode trazer estabilização ou contingência ao paciente. Neste contexto observamos que o ambiente hospitalar pode ser um problema na clínica da Arteterapia pelo fato do paciente em crise aguda não estar disponível dentro de uma perspectiva de tratamento contínuo a médio e longo prazo, mas apenas no período de internação. A autora então relata que:

 

“Devido ao breve tratamento, a ênfase é estabilizar e dar alta rapidamente ao invés de psicoterapia. A maioria dos terapeutas comanda grupos em enfermarias dos hospitais, onde os membros se encontram uma ou duas vezes e mal conhecem uns aos outros. Esses grupos têm geralmente uma estrutura enxuta, abordam temas comuns, e usam materiais fáceis de controlar. Apesar dessas limitações eles são especialmente importantes porque eles são frequentemente o único grupo psicoterapêutico dos pacientes, bem como seus primeiros contatos com a arte com função terapêutica.” (SPANIOL)

 

A Arteterapia dentro do contexto de internação hospitalar pode e deve ser um recurso da instituição, mas com uma abordagem diferente da que vemos na prática clínica ambulatorial, ou seja, é de curto prazo, mais diretiva e com objetivos específicos, com temas “simples e direcionados para o aqui e agora da vida dos pacientes, em vez de dragar o passado.”

Para compreendermos melhor como podemos guiar o grupo arteterapêutico no ambiente de internação a autora nos oferece a possibilidade de pensarmos em estratégias mais pontuais, que abordem os sentimentos que levaram à crise aguda e a conscientização destes através de materiais que introduzam a Arteterapia no tratamento, podendo ser a primeira experiência com esta abordagem.

 

Antes das pessoas começarem a fazer arte, o líder pode explicar que a experiência artística será um processo de três passos para expressar, integrar e conter seus sentimentos e pensamentos. Com os trabalhos concluídos, o terapeuta pontua que os membros expressaram sentimentos fortes de uma forma segura e estão prontos para integrá-los, compartilhando-os com os outros. No final, o terapeuta reconhece a coragem dos membros em expressar e compartilhar e aponta que eles serão capazes de integrar seu aprendizado e retomar seu funcionamento dentro do meio.” (SPANIOL)

 

Nesta perspectiva, o ambiente hospitalar e o uso da Arteterapia tem o objetivo claro de apresentar a terapêutica ao paciente, possibilitar o confronto com os sentimentos e pensamentos confusos e dolorosos integrando-os com a tomada de consciência sobre seu processo de melhoria e estabilização.

 

Hospital Dia

O Hospital Dia é uma instituição que fica entre a internação hospitalar e o cotidiano ambulatorial no tratamento das doenças mentais graves. Ele funciona como um espaço de acolhimento que oferece diversas possibilidades de tratamento após a internação.

No Brasil temos poucos centros de apoio que possuem a estrutura de um Hospital Dia, mas contamos com inúmeras clínicas de atendimento ambulatorial que possibilitam a continuidade do tratamento de quem saiu de uma crise aguda de depressão, de transtorno bipolar ou de esquizofrenia.

Neste serviço, a continuidade do trabalho toma o lugar da abordagem emergencial e de caráter contingencial que no hospital é oferecido, por isso, tonar-se possível traçar um plano de estratégia de acompanhamento e com isso trazer maior conscientização sobre seu processo de adoecimento e recuperação.

 

“É importante enquadrar os sintomas de estresse do cliente, uma vez que esta é uma experiência humana comum. Eles podem ser orientados de que esta condição pode estimular ou exacerbar os sintomas da doença mental como alucinação, agitação ou senso de desesperança. Também deve reconhecer que ele pode ser estimulado por acontecimentos no ambiente, como estigma e preconceito. Arteterapia diretiva pode ser usada para fazer um recorte dos sintomas da saúde mental como um mensageiro que carrega pistas sobre as fontes do estresse e os recursos para manejá-lo. Por exemplo, o tratamento com Arteterapia pode ser organizado em torno das seguintes questões:” (SPANIOL)

 

1. Como você percebe o estresse na sua vida? Quais sintomas você apresenta?

Fazer este reconhecimento sobre si mesmo traz ao paciente o exercício da conscientização sobre seu estado de humor, seus sentimentos e pensamentos. Para isso, ela nos sugere o uso da Arteterapia diretiva, mais alinhada com um formato psicoeducativo onde cabe, por exemplo, o exercício de desenhar “uma imagem de como você experimenta o estresse usando cor, linha e forma” ou “desenhar uma imagem do seu estresse como uma condição climática”.

2. Outro momento é o mapeamento do que faz o sujeito se sentir estressado, ou seja, quais lugares em sua vida, aspectos, situações ou funções contribuem para este adoecimento psíquico?

Uma forma de avaliar isto é pedindo para retratar situações que são gatilhos. Outra forma é sugerindo materiais de arte que evocam uma situação estressante, por exemplo, usando cores dissonantes ou formas desagradáveis.” (SPANIOL)

3. E para fechar o processo de conscientização, é importante pensar sobre as estratégias eficazes para lidar com o estresse, ou seja, o que é possível fazer para produzir um efeito de mudança no modus operandi?

 

“[...]visualizarem uma cena pacífica que reduza o estresse, pintarem esta cena e depois mostrarem onde esses sentimentos de serenidade e capacidade podem ser reativados. Os clientes podem também aprender a atividade artística como uma forma de redução de estresse que evoque uma resposta de relaxamento (Malchiodi, 1999). Por exemplo, pintar uma música com uma trincha e aquarela num papel molhado pode ser calmante se a atividade for concebida como uma técnica de relaxamento.” (SPANIOL)


Reforçando a autoestima

 

“Entrevistas pesquisando pessoas com distúrbios psiquiátricos persistentes indicam que um requisito crítico para a recuperação é "redescobrir e reconstruir um sentido duradouro do eu como um agente ativo e responsável" (Davidson & Strauss, 1992, p. 131) [...] O estudo conclui que os passos para desenvolver este senso de si mesmo incluem ‘fazer um balanço’ pessoal, descobrir um eu mais ativo e colocá-lo em ação.” (SPANIOL)

 

O conceito de propósito entra nessa construção de uma melhora de qualidade de vida quando pensamos que ele promove no sujeito o movimento de ir em busca de algo desejado, traz a força da busca, da caminhada e com isso da percepção de alguns desafios a serem superados, gerando por sua vez, mais desenvolvimento emocional e mental para ele.

Para chegar a este momento, a autora traz a necessidade dele ter reconstruído a noção de si mesmo, ou seja, de incorporar todos os aspectos psíquicos excluídos de sua história devido a doença mental grave, fazendo dele o portador de um estigma que o impede de incorporar tantos outros elementos subjetivos que o compõem enquanto sujeito.

Para esta reapropriação a autora nos apresenta um sistema de identificação que muito nos ajuda a compreender nossos pacientes e para eles fornece uma ferramenta de conscientização dos pontos fortes a serem usados a seu favor e dos pontos frágeis a serem cuidados e desenvolvidos.

 

“Self System consiste em componentes inter-relacionados do eu. Esses componentes são (1) habilidades e talentos, (2) relacionamentos, (3) desempenho no trabalho e (4) valores e ideais.

Ao usar essas áreas como focos de planejamento do tratamento, os terapeutas podem monitorar seus grupos para que eles abordem todas as facetas da vida dos seus membros. O conteúdo desse sistema é especialmente apropriado à visão de recuperação, pois seu foco é nos pontos fortes e aspirações das pessoas e não na sua patologia e déficits.” (SPANIOL)

 

Esse diagrama formulado pela autora nos serve como uma grande bússola no acompanhamento do processo terapêutico nos servindo como uma ferramenta diagnóstica que nos orienta às melhores estratégias para o fortalecimento egóico do paciente. São quatro círculos concêntricos, cada um se refere a um aspecto da vida do paciente.

1. Autodefinição – Quem é você?

O primeiro círculo representa a autoimagem do paciente, como ele se vê, o que sente, como pensa, características que atribui a si mesmo. Um exercício possível nesta etapa é o autorretrato.

2. Relacionamentos – Quais são suas relações próximas e distantes?

Já neste segundo círculo observamos sua rede afetiva e como ele investe sua confiança nas pessoas que estão inseridas nela. Vale a pena pontuar que pessoas próximas não são sinônimos de familiares, mas talvez seja representado como aquelas de maior afetividade e/ou confiança. Por isso, a autora sugere pedirmos ao paciente que represente sua rede de apoio e a si mesmo dentro desta, ou uma imagem sobre um relacionamento ideal e uma sobre uma relação conflituosa ou ainda a representação de seu melhor amigo.

3. Autorrealização – Quais são suas conquistas e realizações e o que você deseja realizar/conquistar?

Aqui no terceiro círculo partimos para uma análise mais objetiva, levando-o a pensar criticamente em sua história para se apropriar do que já conquistou até o momento, assim como nas metas e objetivos futuros, projetando um caminho a percorrer para além da doença. “[...] o eu como um agente eficaz no mundo.”

4. Autovalor – O que dá sentido e propósito à sua vida?

Finalizando com o quarto círculo, retomamos a ideia sobre a importância do propósito. O investimento da energia psíquica pode levar o paciente a equilibrar os movimentos de introspecção e exteriorização na medida em que há uma aproximação do seu desejo e a busca pela manifestação deste no mundo objetivo. “É o aspecto gerador de significado do eu baseado em crenças e valores. Embora seja decorrente das interações das pessoas com o mundo externo, é um processo interno de construção de preferências, esperanças e sonhos, além de identificar aversões, medos e arrependimentos.” (SPANIOL)

Este sistema é uma grande ferramenta que os profissionais da Arteterapia podem fazer uso quando precisam de um “mapeamento” geral sobre a forma como o paciente enxerga a si mesmo e ao seu redor e possui grande eficácia na análise do processo de desenvolvimento do tratamento quando é repetida de tempos em tempos como sugerido. “Os terapeutas podem querer usar a mesma orientação periodicamente para ter uma ideia de se ou de como a autoimagem de um membro do grupo modificou com o tempo.”  (SPANIOL)

Ao analisarmos este trecho da leitura do capítulo que fala sobre a Arteterapia em quadros como depressão, transtorno bipolar grave e esquizofrenia, podemos concluir que a autora muito contribui com a perspectiva mais diretiva do trabalho a fim de trazer um continente onde pacientes possam fortalecer suas estruturas egóicas e perceber suas habilidades, desenvolvê-las e usá-las como ferramentas de construção e crescimento pessoal para muito além do que o diagnóstico as definem.

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Leia também: "Handbook of Art Therapy"– Leitura Comentada – Parte I

ARTETERAPIA: AUTENTICIDADE, CRIATIVIDADE E REABILITAÇÃO.

https://arteparaterapia.blogspot.com/2024/11/handbook-of-art-therapy-leitura.html

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[1] Traduzido com o auxílio do tradutor - www.DeepL.com/Translator,2020.

Referências: 

SPANIOL, Susan. Art Therapy with Adults with Severe Mental Illness. In: MALCHIOLDI , Cathy A., HANDBOOK OF ART THERAPY, NY, 2003

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Caso tenha dificuldade em publicar seu comentário neste blog você poderá encaminhá-lo para o email: arteparaterapia@gmail.com que ele será publicado. 

Obrigada.


Autora convidada: Maria Cristina de Resende

Psicóloga Clínica com formação em Arteterapia e especialização em Psicologia Junguiana e Saúde da Mulher e Psicologia. Mestranda HCTE - UFRJ. 

Supervisora de prática clínica atendendo profissionais da Psicologia e Arteterapia.

Coordenadora de Grupos Terapêuticos para Mulheres.

psi.mcresende@gmail.com
@psi.mariacristinaresende




Flávia Hargreaves é arteterapeuta (AARJ 402/0508), artista e professora de artes para terapia.
Graduada em Comunicação Visual (EBA- UFRJ-1989)
Licenciatura Plena em Educação Artística - Artes Plásticas (EBA-UFRJ- 2010)
Formação em Arteterapia com Ligia Diniz (2009)

Participou como docente de História da Arte nos cursos de Formação em Arteterapia (Ligia Diniz, Baalaka e Leiza Pereira) e Artepsicoterapia (Coord. Maria Cristina Urrutigaray).
Em 2017 fundou o ateliê Locus, onde oferece cursos, ateliês livres e atendimentos em Arteterapia.
Foi colaboradora da Casa das Palmeiras (2014-2018) e Casa Verde (2009). 
Em 2021 criou o projeto Arte para Terapia oferecendo cursos online de História da Arte para Terapia. 
 

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