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Arteterapia e as novas perspectivas para a velhice [PARTE 1]

Esta semana temos o prazer de receber uma convidada especial! A arteterapeuta e pedagoga Maria Teresa Rocha que conduziu a Roda de Conversa de abril/25 com o tema Arteterapia e as novas perspectivas para a velhice.

A autora compartilha sua experiência apresentando um riquíssimo estudo de caso com o objetivo de auxiliar colegas de profissão que enfrentam desafios ao receber clientes com diagnóstico de demência ou Alzheimer.

Você já deve ter percebido que o conteúdo é extenso, por isso resolvi publicá-lo em 2 partes.

Boa leitura e lembre de deixar sua opinião nos comentários deste texto!

 

ESTUDO DE CASO EM ARTETERAPIA: NOVAS PERSPECTIVAS PARA A VELHICE [PARTE 1]

Por Maria Teresa G. Rocha


CONTEXTUALIZANDO


O Brasil está envelhecendo e precisamos falar sobre isso.

Segundo o IBGE (2022), a população brasileira está envelhecendo rapidamente, com aumento no número de idosos e uma queda na proporção de jovens.

O envelhecimento da população brasileira é explicado principalmente pelo aumento da expectativa de vida e pela queda da taxa de fecundidade.

Segundo dados da ONU, o Brasil é o primeiro país da América Latina em população idosa acima dos 60 anos. O número de idosos no Brasil cresceu 57.4% em 12 anos, considerando pessoas acima de 60 anos ou mais. Chegamos em 2022 com 80 pessoas idosas para cada 100 crianças de 0 a 12 anos.

De 2000 a 2023 a proporção de idosos na população brasileira quase duplicou e em 2070 cerca de 37.8% da população brasileira deverá ser idosa.


ENVELHECIMENTO:  TERCEIRA IDADE, IDOSO  e VELHICE.

 

"A harmonia do mundo depende da retificação dos nomes."

Confúcio

 

De uma forma geral ouvimos em nossa sociedade o uso dos termos Envelhecimento, Terceira Idade, Idoso e Velhice.

Mas será que estes termos se referem ao mesmo fenômeno? É importante pontuar as diferenças que existem no uso dos termos. Vamos lá:

ENVELHECIMENTO: É um processo natural da vida que traz algumas alterações no organismo consideradas normais para a fase. Envelhecemos desde o momento em que nascemos.

TERCEIRA IDADE: Pessoas acima dos 60 anos.

IDOSO: Se refere a qualquer pessoa acima de 60 anos. É um conceito criado na França em 1962  substituindo termos como velho e velhote.

VELHICE: É considerado por uns como o último ciclo da vida, é individual e pode vir acompanhado de perdas psicomotoras, sociais, culturais e afetivas. Alguns acreditam que a velhice é uma experiência subjetiva e cronológica. Enquanto outros acreditam que seja uma construção social que cria diversas formas de se entender o mesmo fenômeno, dependendo de cada cultura.

Sinome de Beauvoir já falava nos anos 70 que não reconhecemos a velhice em nós, nem sequer paramos para observá-la, somente vemos nos outros, mesmo que estes possuam a mesma idade que nós.

Segundo Birman (1995), “Velho” na percepção dos “envelhecidos” das classes médias e altas está associada à pobreza, à dependência e à incapacidade. Ou seja, velho é sempre o outro.

Já a noção de “terceira idade” torna-se sinônimo dos “jovens velhos” pessoas dinâmicas que se inserem em atividades sociais, culturais e esportivas.

A expressão “idoso” designa uma categoria social. Implica no desaparecimento do sujeito, sua história pessoal e suas particularidades. “ O idoso é alguém que existiu no passado, que realizou seu percurso psicossocial e que apenas espera o momento fatídico para sair inteiramente da cena do mundo”.

Podemos perceber que estes termos propostos criam mitos, estereótipos e preconceitos.

Depreciando o fenômeno do envelhecimento, trazendo desconforto para geração.

Birman (1995), afirma que sintomas depressivos e demências podem surgir como manifestação de má adaptação à vida e à velhice.

Os dados do IBGE e da ONU mostram que o Brasil será um país de idosos nas próximas décadas.

Será que estamos nos preparando para atender nossos idosos com dignidade como prevê e exige, na forma de lei, o Estatuto do Idoso? Sabemos que grande parcela de idosos hoje no Brasil não tem atendimento adequado, pois a rede de saúde pública não está preparada para uma demanda cada vez maior.

Defendo a importância da Arteterapia no acolhimento e na promoção de saúde mental com este público específico. Neste texto eu quero ajudar você que é arteterapeuta que atua ou deseja atuar na área, e também familiares mostrando os benefícios da Arteterapia apresentando um estudo de caso.


Arteterapia: Um Caminho para Idosos com Demência.


Desenho feito pelo marido de minha cliente e colorido por ela.

Ela disse que a mulher estava feia, desbotada e sem vida 

e pediu para colorir o desenho com a minha ajuda. 


Antes de entrar propriamente no estudo de caso, vou fazer uma introdução sobre a Arteterapia e ao meu modo de trabalhar. A Arteterapia é uma abordagem terapêutica que nos proporciona formar conexões internas entre a intuição, a sensação, o sentimento e o pensamento, permitindo a expressão livre e autêntica.

Proporciona aos idosos segurança para que eles possam se expressar de todas as formas: desenhando, colorindo, ouvindo, falando,  contando histórias, cantando e dançando.

O acolhimento, a segurança, a aceitação e a criatividade ativam o prazer de estar vivo, nos integrando a uma existência repleta de significados. Os encontros são um espaço de afeto, aceitação, respeito e valorização.

Ao abrir espaço para a criação e a realização, mesmo diante de  restrições,  promove o idoso de um lugar de perda, ausência e falta de função, para um lugar de potência criativa, fazendo com que o aqui e agora tenha qualidade e o presente tenha sentido. Valorizar a expressão e a criação da pessoa é valorizá-la como indivíduo, é respeitar e reafirmar seu potencial de vida.

Ao confrontarem as limitações impostas pela idade e/ou pela doença, idosos podem vivenciar sentimentos intensos como raiva, desconfiança, frustração, ansiedade, tristeza, medo e depressão.

A dificuldade em expressar e nomear a angústia de esquecer a própria história, bem como seus medos e frustrações, pode ser amenizada através da Arteterapia. Essa prática terapêutica estimula a capacidade de reação, fortalece a autoestima, encoraja a expressão de afetos e mobiliza potenciais ainda existentes buscando proporcionar mais qualidade de vida aos idosos.

Foi com essa perspectiva que desenvolvi um projeto arteterapêutico, fundamentado nos recursos cognitivos preservados. O objetivo principal é auxiliar, na medida do possível, as pessoas que atendo a organizar seus sentimentos, vivenciar e elaborar perdas, muitas vezes o luto pela perda do marido, visando sempre a melhoria da qualidade de vida.


ESTUDO DE CASO 

O início do processo

"M", atendida entre os 82 e 86 anos.

Em agosto de 2012, iniciamos encontros domiciliares duas vezes por semana, com duração de uma hora e trinta minutos.

Preparei um kit básico de materiais que permaneceu em sua casa, incluindo papéis de diversos tipos (A4, A3, canson, cartolina), lápis de cor e de cera, tintas a dedo e guache, cola, tesoura, pincéis e godê. Outros materiais, como histórias, tecidos e caixas de madeira, eram levados por mim a cada sessão.

No início dos atendimentos, M. residia com sua antiga funcionária, também idosa. O alzheimer foi diagnosticado em 2011 e encontrava-se em estágio inicial. Ela havia perdido o marido após 50 anos de casamento, o que a deixou profundamente abalada e agravou os sintomas da doença, alternando momentos de consciência e inconsciência da morte do marido. Seu humor variava alternando momentos de tranquilidade e irritação.

Durante o ano de 2011 ambos participavam de grupos de memória, aulas de inglês e atividades para idosos no Hospital Adventista Silvestre (HAS). Após o falecimento do esposo, M recusou-se a continuar frequentando esses grupos, levando a família a optar pelo atendimento domiciliar.

Nos primeiros encontros, priorizei a escuta atenta, acolhendo suas queixas. Iniciei o trabalho a partir dos seus desejos e memórias.

M falava de seus pais, seus irmãos e da época em que conheceu o marido. Ela revisitava suas fotos, cartas e agendas antigas, relembrando sua história de vida.

Contou que sua família era muito unida e que se dava muito bem com todos. Havia muitas fotos misturadas, dos pais e irmãos, do marido, de seus quatro filhos e também dos sobrinhos e amigos.

M gostava de guardar estas fotos em caixas e também em porta retratos espalhados pela casa. As caixas estavam bem velhas e eu sugeri reformá-las.

Minha intenção foi buscar, por meio da organização cronológica das fotos, um trabalho de reconexão com as lembranças e sentimentos, promovendo uma reorganização da sua percepção espaço-temporal. Ao trazer o passado para o presente, para o "aqui e agora" fomos unindo o presente com a riqueza de suas memórias.

     Organizar cronologicamente fotos: como um gatilho para revisitar o passado.

     Reorganizar lembranças e sentimentos: trabalhar ativamente na forma como M se relaciona com suas memórias.

     Organização espaço-temporal: ressignificar sua jornada no tempo e no espaço.

     Trazer o presente (aqui e agora): integrar as experiências passadas à sua realidade atual.

     Aliar foco e memória: usar a memória como ferramenta para fortalecer a atenção no presente.


Caixa do EU

Optei utilizar  a técnica da Caixa do Eu, self box, que dialoga com conceitos da psicologia analítica Jung, e com a ideia de que a arte permite acessar conteúdos inconscientes. E também se relaciona com a noção de “espaço potencial” de Winnicott, onde a criatividade media a relação entre o interno e o externo, 

Iniciamos forrando uma caixa de sapatos, utilizando imagens que recortamos de revistas. M ficou bem animada escolhendo e recortando as imagens. Em seguida fizemos a colagem das imagens na caixa.

A colagem nos dá pistas, não apenas pelo caráter das imagens selecionadas, mas também pela articulação entre elementos visuais, sua disposição espacial e modo como ocupam o suporte.

As caixas são objetos carregados de simbolismos. Segundo Chevalier e Gheerbrant, caixas são símbolo do feminino, representação do inconsciente, do corpo materno, ela separa do mundo aquilo que é precioso, frágil ou temível.


O LADO DE FORA geralmente apresenta a imagem que a pessoa mostra para o mundo.

Foto ilustrativa.

 M selecionou várias imagens de mulheres. Colou uma jovem mãe na tampa externa e nas laterais e no fundo externo mulheres de várias idades: uma idosa, uma adulta e duas jovens ao lado de pedras preciosas. M ficou especialmente envolvida nesta etapa do trabalho, falou de como elas eram bonitas, especialmente a jovem mãe com suas filhas no colo. Contou sorrindo que ela era a filha predileta, por ser a mais velha, e que suas irmãs tinham ciúmes.

Numa das laterais mulheres adultas e na outra mulheres jovens. E no fundo externa a mulher idosa.

Sobre a imagem das jovens, M disse que eram bonitas, mas que pareciam um pouco zangadas ao lado colou imagens de pedras preciosas e escreveu o nome do pai.

Contou que ele era um ótimo pai, muito amoroso e que era muito apaixonado por sua mãe.

Sua expressão se iluminou, sorriu e disse que estava feliz com o nosso trabalho.

Segundo Chevalier e Gheerbrannt, a pedra ocupa um lugar de distinção. Existe entre a alma e a pedra uma relação estreita. Segundo a lenda de Prometeu, procriador do gênero humano, as pedras conservam um odor humano.

E por fim, ela colou o texto na lateral da frente da caixa que cobre boa parte do fundo da caixa. O texto encobre parte das imagens das mulheres.

Caixa do EU, parte externa com impresso de propaganda da GNT.

 Texto da caixa:

Pra ser bonito, descabele

Pra emagrecer, coma

Pra ensinar, brinque

Pra ser você, mude

Pra relaxar, grite

 

A mais pura expressão do que M estava vivendo, descontruindo e reconstruindo pontes com o mundo externo.


O LADO DE DENTRO reflete o mundo oculto, sentimentos, traumas, desejos, memórias. Partes menos visíveis da personalidade.

 

Caixa do EU, parte interna.

Todas as imagens escolhidas por M, são de natureza, céu, mar, floresta, neve em tons suaves. Ao colar algumas imagens os limites não são claros, elas estão meio misturadas, enquanto outras imagens são bem delimitadas, assim como suas lembranças e sentimentos. Havia momentos que sua memória estava clara em outros momentos ela misturava as pessoas e os papéis que exerciam em sua vida.

M se mostrava muito satisfeita enquanto forrava a caixa e dizia: “Que maravilha, isto está belíssimo, nós estamos fazendo uma coisa maravilhosa”.

Quando a caixa ficou pronta começamos a organizar fotos colocando-as em ordem cronológica, na medida do possível.

M estava muito envolvida e participava ativamente, falou de seus pais e irmãos, lembrou histórias de sua infância, dos bailes da juventude,  do seu casamento, dos filhos, dos sobrinhos e netos.

Ela estava atenta e focada, contou várias histórias da família, rimos e nos emocionamos com suas memórias. Entrou em contato com momentos difíceis  chorava um pouco, eu a abraçava e depois ela seguia com o trabalho.

Além das fotos encontramos cartões de natal, cartas e agendas cheias de imagens recortadas de revistas, receitas, orações. Ela lia tudo com interesse e entusiasmo.

O fazer artístico é extremamente potente pois alia criatividade, prazer, atenção, foco, ressignificando o passado e integrando o presente.


Curtiu este estudo? Leia agora a parte 2!
https://arteparaterapia.blogspot.com/2025/06/arteterapia-e-as-novas-perspectivas_10.html


Me conta aqui nos comentários o que achou até aqui. Semana que vem tem mais!


Caso tenha dificuldade em publicar seu comentário neste blog você poderá encaminhá-lo para o email: arteparaterapia@gmail.com que ele será publicado. 

Obrigada.

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NOTA 1: As imagens utilizadas nos trabalhos de colagem foram retiradas do acervo de revistas, folhetos e recortes da cliente e as referências das mesmas se perderam com os anos. Mas optei por incluir as imagens neste artigo para ajudar na compreensão do processo arteterapêutico.

NOTA 2: A apresentação deste estudo caso foi autorizada pelos familiares.

Referências:

Birmânia, J. Futuro de todos nós:  Temporalidade, memória e terceira idade na psicanálise. In R Veras (org), Terceira idade: um envelhecimento digno para o cidadão do futuro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 1995.

Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio Editora. 8º ed. Rio de Janeiro, 1994.

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Maria Teresa G. Rocha 

Sou pedagoga e arteterapeuta (AARJ 514/0611), com exeperiência no cuidado à pessoa idosa, tanto em atendimentos individuais quanto em grupos. Desde criança, sempre me senti profundamente conectada com a velhice – gostava de vistar asilos e ouvir histórias bordadas de tempo, afeto e sabedoria.
Com o passar dos anos, essa escuta se transformou em pratica: encontrei na arteterapia uma ferramenta potente para acolher os desfios de envelhecer, promovendo expressão, significado e fortalecimento das potencialidades.
Acredito no cuidado que vai além do corpo, que alcança o sensível, o simbólico e o humano. É nessa escuta atenta e criativa que busco contribuir para uma velhice mais digna, plena e com qualidade de vida.

Instagram: @mariateresarocha_artterapeuta
Contato: mariatgrocha@gmail.com


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Comentários

  1. Anônimo4/6/25 11:13

    Maravilhoso estudo de caso adorei

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pelo seu comentário, mas saiu como anônimo ... qual seu nome?

      Excluir

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