Por Flávia Hargreaves.
O
nome da Dra. Nise da Silveira (1905-1999) é o primeiro que vem à mente de
muitas pessoas quando se fala em Arteterapia e é uma referência importante nos
nossos estudos. Porém, tanto niseanos quanto arteterapeutas afirmam que Emoção
de Lidar é algo muito diverso de Arteterapia, e este discurso sempre me causou
inquietação.
O
termo “Emoção de Lidar” surgiu a partir de uma fala do Luis Carlos, cliente da
Casa das Palmeiras[1],
sobre a sua relação com os materiais e a possibilidade destes se transformarem
em objetos com os quais criava uma relação de afeto. Dra. Nise adotou esta
expressão para nomear a Terapia Ocupacional proposta por ela, que incluía os
ateliês de livre expressão.
Dra.
Nise da Silveira não considerava o trabalho realizado nos ateliês, tanto no
STOR[2] quanto
na Casa das Palmeiras, como sendo Arteterapia. Ela também questionava o uso do
termo Arte para definir o uso de técnicas expressivas com fins terapêuticos,
mas reconhecia que os artistas estavam em todos os lugares, inclusive em um
hospital psiquiátrico. Poderiam emergir em seus ateliês, que, não por acaso,
recebiam visitas e colaborações de artistas e críticos de arte reconhecidos
como Ivan Serpa (1923-1973), Mário Pedrosa (1900-1981), Abraham Palatnik
(1928-2020), entre outros. É importante ressaltar que quem introduziu as
atividades artísticas (pintura e modelagem) como método de Terapia Ocupacional
no STOR foi Almir Mavignier (1925-2018) que era funcionário do hospital e
estudante de Artes. Mavignier seguiu sua carreira artística como pintor e artista
gráfico, sendo reconhecido como um dos precursores da Arte Concreta no Brasil.
Ele orientou internos que se tornaram famosos como Raphael (1912-1979) e Emygio
de Barros (1895-1986). Outros nomes importantes entre os internos, cujo estudo
das imagens está presente em publicações e documentários, são Fernando Diniz e
Adelina.
“[...] De início, direi que não aceito a denominação arte-terapia, muito empregada atualmente. A palavra arte tem conotações de valor, de qualidade estética. Frisemos, entretanto, que nenhum terapeuta tem em mira que seu doente produza obras de arte, e nenhum psicótico jamais desenha ou pinta pensando que é um artista. O que ele busca é uma linguagem com a qual possa exprimir suas emoções mais profundas. O terapeuta busca nas configurações plásticas a problemática afetiva de seu doente, seus sofrimentos e desejos sob a forma não proposicional. Utilizamos de preferência a linguagem plástica, expressão plástica.” [...](SILVEIRA, Nise da. MUNDO DAS IMAGENS. São Paulo: editora Atica. 1992).
Segundo a definição de arteterapeuta proposta na lei 3416/2015, ele “é o profissional que se utiliza dos recursos expressivos de artes visuais, música, dança, canto, teatro, literatura, como elementos capazes de favorecer o processo terapêutico das pessoas, buscando o autoconhecimento, a autoexpressão, o desenvolvimento humano, a criatividade, a prevenção e a reabilitação de doenças mentais e psicossomáticas.”
Dra. Nise deixa um inquestionável legado para estudo do uso terapêutico das linguagens expressivas/ "artísticas" - o desenho, a pintura, a colagem, a modelagem e xilogravura. Também incentivou a experiência teatral, a expressão corporal, a leitura de contos e a poesia. Soma-se a isso o estudo das imagens do inconsciente na perspectiva da Psicologia Analítica de C. G. Jung. A doutora defendia a expressão espontânea com o apoio de um monitor, cujo papel era estar ao lado sem interferir no processo criativo do cliente. Sua obra é pautada no respeito e no resgate da dignidade e da singularidade de cada um.
“O que distingue a arte-terapia das práticas adotadas no museu de imagens do inconsciente é que as atividades aí realizadas são absolutamente livres, espontâneas. O ateliê oferece um ambiente acolhedor, e a monitora (que não é uma arte-terapeuta) nunca intervêm. Apenas uma atitude simpática para com o doente, diremos, no máximo, uma função catalisadora.” (SILVEIRA, Nise da. MUNDO DAS IMAGENS. São Paulo: editora Atica. 1992).
A expressão espontânea é vista aqui como fundamental para a materialização de imagens do inconsciente e o papel do monitor, que não é um arteterapeuta, como alguém que precisa estar lá como apoio, como ponte, mas sem interferir no processo, sem propor nada ao cliente. Ele pode no máximo oferecer apoio técnico sobre o uso dos materiais quando necessário ou solicitado. Mas mesmo assim livre da ideia da existência de um jeito certo ou errado.
É justamente neste ponto que iniciam os desencontros entre Emoção de Lidar e a Arteterapia. Embora a Arteterapia também incentive a expressão espontânea, o arteterapeuta pode fazer intervenções, propor temas e oferecer determinados materiais/técnicas a serem vivenciados no atendimento, por serem considerados adequados naquele momento do processo terapêutico da pessoa. Esta experiência será vivenciada pelo cliente com o objetivo de ajudá-lo a se conhecer melhor, reconhecendo suas capacidades, seus talentos, seus desejos e, também, entrando em contato com suas fragilidades, seus medos e seus monstros internos e trazendo parte desses conteúdos para a consciência. Ao reconhecer seus pontos fortes e fracos, a pessoa será capaz de elaborar e transformar internamente suas questões, dando a elas uma expressão, uma forma, uma cor, etc. Este processo a faz rever o modo como está vivendo, a descobrir novos caminhos e modos de lidar com seus problemas, além de incentivá-la a realizar as suas potencialidades criativas buscando viver uma vida com sentido.
A intervenção e o modo estruturado e por vezes diretivo praticado pelos arteterapeutas seria então o ponto divergente entre a Arteterapia e a proposta terapêutica Emoção de Lidar, além do uso “equivocado” do termo “Arte” na “Arteterapia”. Abrindo um pouco mais o quadro, reconheço que existem muitos modos de se trabalhar com a Arteterapia. Nessa perspectiva vejo o modo Emoção de Lidar, mesmo que não usemos este nome como um deles.
“Dra. Nise da Silveira via que os ateliês de Arteterapia poderiam ser locais de recreação mais do que utilizados apenas para a prática da expressão livre de imagens do inconsciente. Porém é importante acentuar que existem arteterapeutas que não dirigem as experiências e que respeitam as atividades como um recurso para o inconsciente se manifestar espontâneamente.” (BRASIL, C. CORES, FORMAS E EXPRESSÃO: Emoção de Lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana. Rio de Janeiro: Editora WAK, 2013).
É preciso também levar em consideração o público atendido no STOR e na Casa das Palmeiras e as suas especificidades. O recorte da pesquisa teórica e prática da Dra. Nise era composto por pessoas acometidas pela esquizofrenia e o objetivo era diminuir a frequência ou até mesmo evitar reinternações. A Casa das Palmeiras foi criada com a proposta de fazer a ponte entre o hospital e a vida em sociedade, sendo um lugar de reabilitação. Já a Arteterapia é voltada para todas as pessoas, de todas as idades, auxiliando no entendimento e superação de dificuldades como em situações de doença, traumas, estresse, mudanças na vida, baixa autoestima, entre outras. Como também aquelas que não estão vivendo uma crise específica, mas que buscam o autoconhecimento e a qualidade de vida.
Minha experiência na Casa das Palmeiras
Estive na Casa como monitora no ateliê de desenho e pintura entre 2014 e 2018. Como arteterapeuta enfrentei dificuldades diante da não interferência, em estar ao lado deixando o processo do outro fluir espontaneamente. Durante muito tempo tive a impressão de que não fazia nada, o que acabava trazendo um certo incômodo e desânimo. Aos poucos, com persistência e humildade, pude compreender que o fundamental era exatamente e tão simplesmente “estar ali” e assim ia construindo uma relação de afeto e respeito com cada um dos clientes da instituição.
Tão importante quanto as imagens produzidas era o afeto - o “afeto catalizador” - funcionando como ponte, tornando possível a autoexpressão de quem por muito tempo estivera fechado em si mesmo. Segundo a doutora, a volta à realidade dependia do estabelecimento de uma relação de confiança com alguém e esta se estenderia ao contato com outras pessoas e com o ambiente. Os clientes estabeleciam vínculos afetivos entre si, com os monitores e funcionários, mas o grande vínculo era com a Casa e com a presença ainda sentida por muitos da Dra. Nise, que se refere ao ambiente como um importante agente terapêutico. Embora o termo Emoção de Lidar se referisse aos materiais e objetos criados, aprendi que a emoção de lidar estava presente em muitos outros aspectos, como nas relações interpessoais e na interação com o lugar, como uma entidade estruturante.
Fui afetada e transformada pela experiência, como muitos que passaram por lá. Não é fácil lidar com a loucura, mas é muito fácil se deslumbrar com ela e com a riqueza das imagens, e às vezes me vi esquecendo do sofrimento que a doença causa. E, então, uma fala ou um gesto me lembrava desta dor. Estar lá durante muitas horas, o que difere dos atendimentos arteterapêuticos, trouxe à tona muitos dos meus medos e monstros internos. Por esta razão, somos orientadas a estar em terapia durante nossa estada na Casa.
O que aprendi e coloco em prática como arteterapeuta.
Emoção de Lidar me ensinou a acompanhar os passos do outro, estando ao lado, sem inquietações com a repetição de técnicas, temas, cores e formas, percebendo as pequenas mudanças nas imagens ao longo do processo arteterapêutico. Fortaleceu muito a minha observação, me tornando mais atenta ao processo, aos gestos, falas e olhares que acompanham a criação. Aprendi que a expressão espontânea pode incluir a livre escolha da linguagem e dos materiais expressivos pelos clientes.
Com relação ao estudo das imagens, a organização e a cronologia das mesmas, a Arteterapia segue os passos niseanos. O material é organizado em pastas individuais de cada cliente por data, mas também as observo separadas por tema.
Em minha prática com grupos uso propostas estruturadas com relação aos temas dos encontros e seus objetivos. Na parte expressiva mesclo práticas que definem a linguagem e o material com a livre expressão, como aprendi na Casa das Palmeiras. Nos atendimentos individuais tenho bastante flexibilidade com relação ao trabalho expressivo, acolhendo e seguindo o movimento do cliente.
A preparação para um atendimento passou a ser cada vez menos definir uma prática para aplicar, e mais estudar o caso, fazer supervisão e ter clareza dos pontos que também me afetam naquele caso. E também entendi a importância de firmar um compromisso com a minha prática artística, colocar a mão na massa e estar em contato com as minhas imagens. Sobre estes pontos, a Casa das Palmeiras oferecia espaço para estudo, supervisão e também éramos incentivadas a nos mantermos em atividade criativa. Lembro que um ponto de destaque na seleção de estagiários era se a pessoa pintava, desenhava, cantava, etc.
Para concluir, entre ENCONTROS e DESENCONTROS entre a ARTETERAPIA e EMOÇÃO DE LIDAR, defendo que o arteterapeuta deve estudar e pode colocar em prática este modo de trabalhar os meios expressivos/artísticos na sua profissão, fazendo os ajustes necessários de acordo com a sua realidade e o nicho que atende.
Me conta aqui o que pensa sobre este tema!
[1] CASA DAS PALMEIRAS, espaço de reabilitação psiquiátrica fundado em 1956 por Dra. Nise da Silveira (psiquiatra), Maria Stela Braga (psiquiatra), Belah Paes Leme (artista plástica) e Ligia Loureiro (assistente social).
[2] STOR - Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação – Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, RJ, atual Museu de Imagens do Inconsciente, RJ. Dra Nise Da Silveira assume este setor em 1944, quando foi reintegrada ao serviço público.
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Referências:
BRASIL, Claudia. CORES, FORMAS E EXPRESSÃO: Emoção de Lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana. Rio de Janeiro: Editora WAK, 2013.
SILVEIRA, Nise da. O que é a Casa das Palmeiras. In : Casa das Palmeiras. Emoção de Lidar: uma experiência em psiquiatria. Coord. Nise da Silveira. São Paulo: Editora Alhambra, 1986.
SILVEIRA, Nise da. MUNDO DAS IMAGENS. São Paulo: editora Atica. 1992.
<https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa5802/almir-mavignier > acessado em 25/11/2020.
Publicação atualizada do texto de dezembro de 2020, publicado originalmente no blog atelie.locus com revisão de Erika Kohler.
Me conta aqui nos comentários o que pensa sobre o tema!
Caso tenha dificuldade em publicar seu comentário neste blog você poderá encaminhá-lo para o email: arteparaterapia@gmail.com que ele será publicado.
Flávia Hargreaves é arteterapeuta (AARJ 402/0508), artista e professora de artes para terapia.
Em 2021 criou o projeto Arte para Terapia oferecendo cursos online de História da Arte para Terapia.
Comentário enviado por Marcela Figueiredo Campbell (28/10/24), mas aqui preciso dizer que conheci a Marcela na Casa das Palmeiras: "O texto que toca o coração! me trouxe muitas memórias e várias dela compartilhadas com você! um abraço, Marcela!"
ResponderExcluirQue maravilha ler seus textos! Muito obrigada por nos presentear, mais uma vez, com os seus vastos conhecimentos! Saudades. Beijos. Ass: Isabel Pires
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