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ARTE DE DESAPARECER no processo criativo.

 Flávia Hargreaves.


O texto a seguir traz uma reflexão sobre a concentração e o foco no processo criativo. Estudando Psicologia Positiva entrei em contato com o conceito de FLOW (fluir) como uma experiência de êxtase, um estado de plenitude no presente que alcançamos quando fazemos algo de nosso próprio interesse. Ao mergulharmos no processo, o que fazemos parece não nos exigir esforço e captura toda a nossa atenção.

Segundo Mihaly Csikszentmihalyi, citado no curso [1] por Sofia Bauer, seria "um estado dinâmico que se caracteriza pela consciência de quando a experiência é feita pelo seu próprio interesse."

O conceito de flow me fez rever um texto de 2017 [2], que compartilho com vocês revisado e atualizado.

Boa leitura e deixe aqui seu comentário sobre o tema!

[1] curso Certificação em Psicologia Positiva Sofia Bauer.

[2] "A arte de desparecer", texto publicado originalmente em <flaviahargreaves.blogspot.com>, 3/5/17, com revisão de Regina Diniz 



Desenhos e fotografia: Flávia Hargreaves, 2020.


“Para que a arte apareça, temos que desaparecer.”
Nachmanovitch.

Tenho refletido muito sobre a experiência de produzir imagens e de como o processo se intensifica, quando conseguimos entrar em um estado de absoluta concentração com o que estamos produzindo, quando o fazer nos absorve e passamos a um estado de atenção plena, onde consciente e inconsciente tornam-se uma única força, quando DESAPARECEMOS.

Mas o que seria desaparecer? Seria quando autor e obra se misturam, se fundem no PROCESSO, que toma para si toda a cena. Como diz Nachmanovitch (1993) seria quando nos tornamos o que estamos fazendo, nas palavras do autor: "[...] Mente e sentidos ficam por um momento inteiramente presos na experiência. Nada mais existe. Quando ‘desaparecemos’ dessa maneira, tudo à nossa volta se torna uma surpresa, nova e fresca. O ser e o ambiente se unem. Atenção e intuição se fundem. [...]. 

Pensando sobre este tema, reconheço o lugar privilegiado que ocupo para observá-lo, seja como autora/artista, professora ou arteterapeuta. Como autora/artista, tenho-me entregue a esta experiência com os meus desenhos que, no momento, se mostram ser o material e a linguagem capazes de me absorver por inteiro. Esta prática faz com que o tempo e o mundo desapareçam, que eu esqueça de mim e ao mesmo tempo me sinta presente. Reconheci, no meu processo criativo, a importância do primeiro traço ser espontâneo. Encontrei o lugar da DIVERSÃO no fazer arte e descobri que o prazer é fundamental para nos levar, de um modo saudável, para este estado mental de atenção e concentração. Sobre isso, Nachmanovitch nos diz que: “[...] Esse vivo e vigoroso estado mental [...] tem suas raízes na brincadeira infantil e floresce numa explosão de plena criatividade.”

Como professora de artes, observo o comportamento dos alunos ao realizarem um trabalho plástico. Enquanto alguns conseguem mergulhar no fazer proposto, outros evitam a entrega e limitam-se a cumprir o que foi solicitado, o mais rápido possível, a fim de ficarem livres para, por exemplo, checar as mensagens no celular.

Como arteterapeuta, tenho experienciado esses momentos de desaparecer... Nesse caso, não se trata apenas do autor/obra se misturarem e o processo se impor, mas de o arteterapeuta desaparecer com o ambiente, pois precisamos assumir uma postura meditativa de observador. Resumindo, se o processo deu certo, o arteterapeuta deve desaparecer. Não é tão fácil quanto parece, mas é um aprendizado necessário.

Outra questão, com relação ao “processo criativo e o desaparecer”, com a qual me deparo no meu trabalho, é o TEMPO, lembrando que estar absorvido pela experiência criativa nos leva ao seu esquecimento. Sendo assim, como artista, tenho uma relação com o tempo; como professora e arteterapeuta, sou intimada a assumir outra. Como intervir no processo e fazer tudo APARECER DE NOVO? Isso mesmo: “Cortar o barato!” Por compreender e vivenciar em mim o processo de desaparecimento, como propõe Nachamanovitch – “para que a arte apareça temos que desparecer” – reconheço minha resistência e desagrado em assumir este papel, mas ele é inevitável. Procuro por brechas, e vou interferindo aos poucos, voltando a me tornar presente, visível, esperando que alguma etapa do trabalho se conclua para que as próximas etapas sejam retomadas nos próximos encontros. Aos poucos vou aprendendo...


DESAPARECIMENTO [PROCESSO-DIVERSÃO-TEMPO] REAPARECIMENTO

Flávia Hargreaves na Oficina “Chiquinha Gonzaga”, abril 2017, coordenada pela arteterapeuta Rosangela Rozante, também autora da fotografia. A oficina fez parte do evento promovido pela AARJ (Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro).

Pude vivenciar este corte sutil e bem realizado, por Rosangela Rozante, na oficina “Chiquinha Gonzaga”. Em dado momento da oficina, tudo deixou de existir para mim, mergulhei na minha produção, esqueci da proposta inicial e entrei em meu próprio processo de modo intenso. Aos poucos, uma voz suave e calma foi chamando todos os participantes “de volta” e eu, suavemente, fui “reaparecendo” junto com o mundo à minha volta. Pude concluir a imagem e me separar dela, como deve ser, para poder vê-la ao final. Me senti revigorada com a experiência e esta sensação me acompanhou durante um bom tempo.


CONCLUINDO

Desaparecer e reaparecer, misturar e separar, deixar fluir e cortar, esquecer e lembrar, se colocam diante de mim como operações opostas e complementares. Devemos nos deixar desaparecer, permitir que o processo criativo seja profundo, fluido, espontâneo e revelador; e saber o momento de concluir e reaparecer. Esse é um caminho “com volta”, e só faz sentido se assim o for, se, ao final, você estiver de volta, de volta ao mundo, de volta ao tempo, consciente da experiência que viveu e, quem sabe, revigorado e com novas perspectivas sobre si e o mundo à sua volta.

Referência Bibliográfica:
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. 5ª ed. São Paulo: Summus Editorial, 1993.


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Obrigada.






Flávia Hargreaves é arteterapeuta (AARJ 402/0508), artista e professora de artes para terapia.

Graduada em Comunicação Visual (EBA- UFRJ-1989)
Licenciatura Plena em Educação Artística - Artes Plásticas (EBA-UFRJ- 2010)
Formação em Arteterapia com Ligia Diniz (2009)

Participou como docente de História da Arte nos cursos de Formação em Arteterapia (Ligia Diniz, Baalaka e Leiza Pereira) e Artepsicoterapia (Coord. Maria Cristina Urrutigaray).
Em 2017 fundou o ateliê Locus, onde oferece cursos, ateliês livres e atendimentos em Arteterapia.
Foi colaboradora da Casa das Palmeiras (2014-2018) e Casa Verde (2009). 
Em 2021 criou o projeto Arte para Terapia oferecendo cursos online de História da Arte para Terapia. 
 

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arteparaterapia@gmail.com

Comentários

  1. Sandra Pinto21/10/24 08:30

    Sobre os alunos fazendo rapidamente as "tarefas " para retornarem aos celulares, penso que se esses alunos experimentassem desaparecer no fazer artístico vivenciariam o tempo qualitativo de Kairós, onde alguns minutos equivalem a anos e vice-versa, e apareceriam revigorados, com mais tempo para curtir seus celulares com outros olhos.

    Quanto ao desaparecimento do arteterapeuta lembrei de uma passagem de Jung na Prática da psicoterapia, na qual ele afirma que quer se queira ou não, se estivermos dispostos a fazer o tratamento psíquico de um indivíduo devemos renunciar à superioridade do nosso saber. Nesse sentido entendi o desaparecimento do arteteterapeuta, como uma renúncia do saber, mesmo que momentânea, propiciando uma fusão com o cliente, como parte do processo terapêutico.

    Flávia, gostei muito do seu artigo.

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    1. FLAVIA PESSOA DE MELLO MACIEL21/10/24 11:55

      Obrigada pela sua colaboração Sandra. Muito boas as suas observações e não tinha pensado na perspectiva do desaparecimento deste "lugar de saber", achei interessante pensar nisso.

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  2. Parabéns, suas reflexões me faz percorrer os caminhos já vivenciados . Em sala aula, a pressa por fazer, por fazer, o tempo que interrompe a entrega e o retorno que por vezes a alma pede.
    Estar no aqui e agora na fluir na entrega de ser apenas um humano.

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    1. Obrigada pelo seu comentário. Mas entrou como anônimo e eu gostaria de saber seu nome.
      Acho que como profissionais também precisamos vivenciar este mergulho no nosso próprio processo criativo. Não dá pra ficar só na teoria, precisa ser vivenciado.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Laura Nessimian. Acho bastante sensível a sua reflexão. Como terapeuta, muitas vezes sou atropelada pela ansiedade de interferir e trazer soluções para o cliente. A grande sabedoria é saber o momento certo de aparecer e desaparecer.

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    1. Pois é Laura, mas esta ansiedade vamos aprendendo a controlar com a prática mesmo. Identificá-la é o primeiro passo.

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  5. Flavinha, querida! Aqui é Andrea Penteado. Hoje minha aula de metodologia do ensino das artes visuais partiu o filme Tarja Branca e caminhamos no sentido de experimentar brincadeiras, jogos e recuperar esse lugar do brincar da infância como o lugar do pleno envolvimento criativo. Adorei o texto. Vou compartilhar com meus estudantes.

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    Respostas
    1. Oi Andrea! Obrigada por comentar e compartilhar!!! Temos muito a aprender com as crianças. Elas experimentam isso com muita facilidade, mas para muitos adultos não é tão simples mas se torna um exercício necessário. Este envolvimento criativo pode ser estimulado na Arteterapia.

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  6. Comentário enviado por Marcela Figueiredo Campbell (28/10/24): Esse desaparecer me remete à paixão, sentimento ilustrado por Fayga durante o processo criativo, que temos e precisamos dele para amadurecer em conjunto com a obra. Muito bom, Flávia, cabeça explodindo aqui. Abraços, Marcela.

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