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ARTE PARA TERAPIA: SOBRE O DESENHO, [DES]APRENDENDO COM OS MESTRES

por Flávia Hargreaves

Exercícios com linhas. Flávia Hargreaves, 2018.

A partir da Arte Moderna (séc. XX), grandes nomes como Pablo Picasso (1881-1973) e Wassily Kandinsky (1866-1944) reinventaram o desenho, libertando-o dos cânones clássicos e acadêmicos. Os caminhos percorridos por eles para a “libertação” do traço, na busca de algo que lhes parecesse essencial, se cruzam na recuperação da criança nos seus primeiros contatos com o desenho. Embora os artistas citados tenham desenvolvido sua obra em direções distintas, Picasso se mantendo figurativo e Kandinsky inaugurando a arte abstrata na História da Arte, ambos deixam um legado significativo para o que se tornaria não só o desenho, mas também a pintura, para as gerações futuras. 

Wassily Kandinsky (1866-1944), “Primeira Aquarela Abstrata” (1910), aos 44 anos.

Em 1910, Kandinsky, que até então havia construído sua carreira como artista figurativo, mergulha em uma nova experiência, na qual desconstrói o seu estilo, dispondo-se a rabiscar como uma criança na primeira infância. Segundo Argan (1998), “Kandinsky se propôs a reproduzir experimentalmente o primeiro contato do ser humano com um mundo do qual não sabe nada, nem sequer se é habitável. É apenas algo diferente de si: uma experiência ilimitada, ainda não organizada como espaço, cheia de coisas que ainda não tem lugar, forma ou nome.” [...] Kandinsky se propõe a “analisar no comportamento da criança, a origem, a estrutura primária da operação estética” do qual ela se afasta gradativamente cedendo lugar a experiência racional e intelectual do mundo, passando a viver em meio a significados e explicações.


Pablo Picasso (1881-01973), “Ciência e Caridade”(1897), aos 16 anos.

Sobre esse tema trago uma citação popular de Pablo Picasso, na qual diz que aos 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas que precisou uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças. O artista contemporâneo Keith Haring (1958-1990)  diz que "as crianças sabem algo que a maior parte das pessoas esqueceram”.

  
Keith Haring (1958-1990), série “28 cabeças” (1989), aos 31 anos.

Contribuindo para a reflexão sobre a importância da recuperação da criança para o exercício criativo, Ostrower (2013) nos recorda que “basta ver a alegria contagiante das crianças, inteiramente absorvidas em seu fazer, para ter uma ideia da grande aventura que é criar. Aventura, entrega e conquista; rumo a novas experiências e novos mundos. É como se as crianças, desde sempre, soubessem colher a essência do ser.”

O DESENHO E A TERAPIA
Pensando sobre o desenho na terapia, algumas perguntas me vem à mente: [1] Seria a função do desenho na terapia a recuperação dessa criança? Viva, livre, espontânea, intensa e curiosa? [2] Como lidar com as falas reativas ao desenho tão comuns no mundo adulto, tais como: “não sei desenhar” ou “parei no boneco-palito?
Respondendo a primeira, acredito que SIM e que para alcançar esse objetivo será necessário tornar a experiência com o desenho – rabiscar e criar formas - prazerosa, divertida e interessante. A segunda envolve a questão das competências e seria necessário iniciar um processo de resignificação das crenças sobre as habilidades artísticas e a capacidade de criar. Pensando nas duas questões em conjunto podemos cair na armadilha de acreditar que tornar a prática do desenho terapêutico divertida, prazerosa e livre de julgamentos, seria assumir uma atitude infantilizadora com relação ao adulto diante de nós.

Como arteterapeuta já vivenciei a situação do cliente estar frustrado com o resultado do seu trabalho plástico e ao invés de ouvi-lo, defendi que estava muito bom. A consequencia foi ouvir a seguinte frase: "você acha que eu não sou capaz de fazer melhor do que isso?" Eu precisei pensar sobre isso... 

Acredito que cada profissional deverá encontrar as suas respostas, mas seja qual for o caminho que deseje seguir precisará refletir sobre o lugar que ocupa em relação a prática artística. Ele não poderá compartilhar com o seu cliente o lugar de desconforto, insegurança e julgamento diante de suas próprias formas expressivas. 


O TERAPEUTA E A ARTE

O caminho que defendo é a aproximação entre o terapeuta que utiliza a expressão artística e a Arte, contemplando o estudo da História da Arte, das linguagens e das técnicas, além da necessidade do profissional assumir o compromisso com a sua prática expressiva. Ou seja, para trabalhar com imagem é preciso estar familiarizado com os diversos estilos e soluções propostas pelos artistas para expressar sua visão de mundo somado ao seu empenho no exercício prático de autoexpressão em imagens.  A partir daí, o terapeuta poderá formar a sua concepção do que seria “o bom" e o "mau desenho” e estaria apto a sustentar o processo de descoberta do desenho, ou de qualquer outra linguagem plástica, do seu cliente.


O DESENHO, A TERAPIA E A ARTE
Retomando as citações dos artistas no início desse texto, nas quais deixam clara a neccessidade de desconstrução da ideia do "bom desenho", propondo um “desaprender” para “reaprender”, não temos mais certeza se ao dizer “eu não sei desenhar” estaria qualificando ou desqualificando o sujeito diante dessa prática. Podemos ser levados a concluir precipitadamente que o nosso cliente adulto, que se constrange diante de sua "inabilidade", parou no ponto em que artistas consagrados almejavam chegar. Que maravilha!!! Será?

Chegamos em um ponto importante para refletir sobre a prática do desenho no processo terapêutico, e a pergunta agora seria: O que  significa “saber desenhar”? Nosso cliente sabe desenhar? Os artistas como Pablo Picasso, Keith Haring, Wassily Kandisnky, Joan Miró e tantos outros, modernos e contemporâneos, sabem desenhar? Sim, sabem! Saber desenhar, não só na perspectiva terapêutica, mas também na da Arte, significa descobrir na prática, no exercício, o seu traço particular. Seria apropriar-se do seu gesto, do seu movimento, de algo que lhe é próprio e intransferível. E, ao fazer isso, valorizar a descoberta ao invés de criticá-la.
Sobre o julgamento e a auto-critica, observamos o poder da comparação, muitas vezes estimulada no ambiente escolar ainda na infância. Embora fique mais evidente em trabalhos realizados em espaços coletivos, onde constatamos a comparação com o trabalho do outro, também ocorre em atendimentos individuais onde a comparação se dá em relação a uma ideia do que se acredita ser "bom". Caberá ao facilitador desse espaço promover um olhar ampliado em relação à Arte e estimular o espírito de colaboração, crescimento e respeito mútuo.  Ao invés de lutarmos contra a prática da comparação, sugiro usá-la a favor, revendo os parâmetros, ampliando o leque de referências retiradas da própria História da Arte. 

Com relação às habilidades, não vejo problema algum em auxiliar o cliente tecnicamente com relação ao manejo e entendimento do material utilizado. O conhecimento não representa limitação mas libertação e pode ser facilitador na busca pessoal de uma linguagem capaz de expressar os conteúdos que buscam uma forma.

CONCLUINDO
Os grandes mestres da Arte Moderna nos ensinam a importância de “desaprender” e resgatar a criança em sua espontaneidade e potência. O setting terapêutico se mostra um local propício para, inspirados nos artistas, trilharmos o caminho da desconstrução/reconstrução de modo criativo. Se por um lado a História da Arte nos inibe com sua exuberância e parece não restar opção senão a contemplação, a mesma história nos mostra novos caminhos e possibilidades. A Arte Moderna e a Arte Contemporânea, principalmente, nos convidam a participar desse mundo criativo ativamente. 

O exercício criativo do desenho pode ser libertador e se tornar um aliado na experimentação de si mesmo, ao reconhecer o traço, o gesto de cada um como uma expressão individual autêntica do seu modo de ser e agir no mundo. A folha de papel se torna o espaço ilimitado onde tudo é possível, onde ao estabelecermos novas relações entre as linhas, formas e cores estabelecemos novas relações com o mundo, na busca de uma forma que nos auxilie a recuperar um sentido que não seja uma mera explicação.

Para encerrar trago mais uma citação de Pablo Picasso: ''O desenho não é uma brincadeira. É muito grave e misterioso o ato de que um traço possa representar um ser vivo. Não apenas sua imagem, mas sobretudo aquilo que ele representa, aquilo que ele realmente é. Que maravilha! Não seria isso mais surpreendente do que todas as prestidigitações e 'coincidências' do mundo?''


Referências:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. 5º reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Campinas : Editora Unicamp, 2013.

Imagens:
Wassily Kandinsky (1866/ 1944), artista russo. Arte Abstrata.
Pablo Picasso (1881/1073), artista espanhol. Cubismo.
Keith Haring (1958/1990), artista norte-americano.  Pop Art.

[texto publicado originalmente em 29 de agosto de 2018, revisado em 3 de janeiro de 2021]

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Caso tenha dificuldade em publicar seu comentário neste blog você poderá encaminhá-lo para o email: arteparaterapia@gmail.com que ele será publicado. 

Obrigada.






Flávia Hargreaves é arteterapeuta (AARJ 402/0508), artista e professora de artes para terapia.

Graduada em Comunicação Visual (EBA- UFRJ-1989)
Licenciatura Plena em Educação Artística - Artes Plásticas (EBA-UFRJ- 2010)
Formação em Arteterapia com Ligia Diniz (2009)

Participou como docente de História da Arte nos cursos de Formação em Arteterapia (Ligia Diniz, Baalaka e Leiza Pereira) e Artepsicoterapia (Coord. Maria Cristina Urrutigaray).
Em 2017 fundou o ateliê Locus, onde oferece cursos, ateliês livres e atendimentos em Arteterapia.
Foi colaboradora da Casa das Palmeiras (2014-2018) e Casa Verde (2009). 
Em 2021 criou o projeto Arte para Terapia oferecendo cursos online de História da Arte para Terapia. 
 

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arteparaterapia@gmail.com

Comentários

  1. Percebi que desaparecemos quando fazemos o que gostamos e ou necessário fazer com prazer e reaparecem os quando o tempo se esgota e ou finalizamos a obra..por isso a arte seja ela qual for nos faz desligar por um breve tempo no encontro com nosso ser , nossa alma..

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