por Flávia Hargreaves
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Merzpicture with Rainbow (detalhe). Kurt Schwitters. 1939. |
O desafio de levar
conteúdos da História da Arte para a Arteterapia iniciou no período de estágio,
em 2008, quando me deparei com os primeiros desafios na preparação dos
atendimentos. Muitas vezes busquei inspiração em grandes nomes da Arte como
Henri Matisse (1869-1954), Frida Kahlo (1907-1954) e Louise Bourgeois
(1911-2010). Depois de formada criei laboratórios e grupos de estudo, mas foi
somente em 2013 que criei meus primeiros cursos.
O primeiro deles
foi Dadá e Surrealismo, contribuições para a Arteterapia. Até hoje
esses dois movimentos da Arte Moderna me parecem fundamentais para o
entendimento da Arte na Arteterapia. Eles nos convidam a experimentar o acaso
no processo criativo, oferecendo "receitas" para driblar o controle e
permitir a expressão livre e espontânea das imagens do
inconsciente. Embora o movimento Dadaísta não faça referência direta ao
inconsciente, como ocorre no Surrealismo com o interesse dos artistas pelos
estudos de Freud, ele o acessa ao propor a negação do racional e do lógico. Por
esta razão, suas práticas se mostram muito potentes para o processo
arteterapêutico.
Ao abrir espaço
para o acaso, partindo de um processo cujo centro é o aleatório e o absurdo,
deixando o trabalho plástico fluir livremente sem um objetivo, sem uma
consigna, sem um tema definido, o símbolo surge espontaneamente. Digo isso
porque, quando o terapeuta sugere ao seu cliente que busque um símbolo para
algo como “o feminino”, “o herói”, etc. ele está, em certa medida,
constrangendo essa espontaneidade. Segundo Jung, os símbolos “não são
inventados pelo ego mas, pelo contrário, surgem de modo ESPONTÂNEO do
inconsciente.” (STEIN, Murray. 2012, grifo nosso)
Merz Art: Coisas
como matéria prima para criar.
Neste texto trago
a proposta Merz Art do artista dadaísta alemão Kurt Schwitters (1887/1948), que
podemos entender como uma colagem ampliada ou assemblagem. O artista propõe uma
colagem 3D utilizando coisas cotidianas, tais como pequenos objetos, papéis,
recortes de jornal, etiquetas, recibos, embalagens, etc. Seria uma sucata
personalizada porque todas essas coisas devem ter sido vividas pelo autor e, ao
invés de serem descartadas, são recolhidas e combinadas em uma obra. Essas
colagens ampliadas podem se tornar esculturas ou até mesmo instalações.
Ao pedir que o
cliente guarde objetos, papéis, etc. que cruzem o seu caminho entre uma sessão
e outra, estamos propondo que se recolham restos aleatórios do dia-a-dia, que
se guardem rastros de um caminho percorrido ao longo deste período. Estas
coisas retratam a rotina da pessoa ou algum momento específico que ela viveu
naquela semana. De qualquer forma, estaremos diante de uma história e da ideia
de conhecer muito de alguém pelo seu lixo.
Diante de uma
prática Dadá conduzida pelo acaso, o arteterapeuta terá que encarar a própria
resistência em correr o risco de não chegar a lugar nenhum. Este impasse só
será superado quando o profissional compreender os processos artísticos.
Mas calma, nesta proposta o acaso não domina toda a cena. Os itens são colhidos
ao acaso, mas em um segundo momento, quando a colagem está sendo produzida,
estamos diante de um processo no qual se estabelecem relações entre as partes,
não buscando um tema ou símbolo, mas organizando, dando forma e descobrindo-se
no processo. Todas as etapas vividas nesta construção trarão suas histórias e
será a partir deste diálogo que os conteúdos poderão se tornar conscientes e
serem elaborados na terapia.
“Não é o acaso que organiza
papéis, bilhetes, cédulas, embalagens, cartões e outras
tantas substâncias descartadas: o acaso fez com que
eles fossem encontrados por Schwitters e guardados em seu bolso do paletó.
Seriam 'objets trouvés', atualizados não só no conteúdo, mas como substância:
de objetos a matérias primas. Com paciência, o exame minucioso dos papéis e
outros materiais coletados possibilita descobrir associações imprevistas,
sugerindo novos significados ao que já havia sido transformado em lixo. Não só
cores e texturas, mas palavras, ou pedaços delas, imagens, recortes, fragmentos
que compõem uma poética visual.” (PASSETI, Dorothea Voegeli).
Concluindo
Rastros e restos
são a matéria-prima desta proposta artística que tem muito a oferecer para a
aplicação da Arte na Arteterapia. Criar coisas juntando coisas é um excelente
caminho para contar histórias, pois elas são testemunhas e provas do caminho
percorrido. E, por mais banais e cotidianos que pareçam ao primeiro olhar, ao
se relacionarem na obra, constroem novos significados em uma criação poética e
subjetiva.
Se você utiliza sucata na sua prática em Arteterapia, experimente torná-la mais pessoal deixando esta coleta de coisas na responsabilidade do seu cliente. Você poderá oferecer alguns materiais que poderão ser somados ao que a pessoa trouxer. De qualquer modo, você vai estar realizando trabalhos com sucata de um modo diferenciado e com referenciais da História da Arte para lhe dar suporte. O que acha? Conta aqui pra mim nos comentários!
Quero muito saber a sua opinião!
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Referências:
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo, SP. Editora Companhia das Letras. 1998, 5º reimpressão.
PASSETI, Dorothea Voegeli. Colagem: Arte e Antropologia. In: Ponto e Vírgula. revista eletrônica semestral do programa de estudos pós-graduados em ciências sociais da puc-sp. Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/artigos/02-DodiPassetti.htm
STEIN, Murray. JUNG. O Mapa da Alma. São Paulo, SP. Editora Cultrix. 2012, 9º edição.
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Flávia Hargreaves é arteterapeuta (AARJ 402/0508), artista e professora de artes para terapia.
Em 2021 criou o projeto Arte para Terapia oferecendo cursos online de História da Arte para Terapia.
Excelente texto, realmente um modo diferenciado de trabalhar com sucata e com esse referencial da história da arte. Adorei!
ResponderExcluirA História da Arte nos ajuda muito na ampliação de algumas práticas na Arteterapia. Seu comentário foi publicado como "anônimo" e gostaria muito de saber seu nome!
ExcluirGostei muito do texto e sou desse tipo de arteterapeuta que recolhe alguns itens ao acaso para serem utilizados a posteriori!
ResponderExcluirOlá, fico feliz em receber seu comentário mas infelizmente ele foi publicado no modo anônimo. Sobre o que vc escreveu, se recolhe itens ao acaso para a sua própria produção está de acordo com a proposta de Schwitters. Mas se recolhe os itens para compor uma coleção de sucata como oferta para seus clientes, neste caso estariam trabalhando com uma sucata não vivida por eles.
ExcluirComentário enviado por Sandra Mara Alves pelo facebook: "Muito antes de conhecer arteterapia o termo assemblagem, solicitava aos meus aluninhos da educação infantil, para coletarem objetos durante as férias e trazerem para fazermos atividades de reencontro no primeiro dia de aula pós férias , foi surpreendente teve pauzinhos, pequenas pedras até um linda borboleta azul capturada pelo avô e que com uma lupa, que sempre tinhamos na sala para atividades diferentes, observamos suas grandes asas azuis claro que nos surpreendeu com seus arabescos dourados como as borboletas dos contos de fadas. Tive um pouco de trabalho para convencer os aluninhos a soltá-la para que não morresse pois estava dentro de uma embalagem transparente de bolo. Isso aconteceu em uma escola rural em 2012. Muitos outros objetos e divertimento e descobertas aconteceram nesse dia formando histórias e memórias. Fiquei muito muito feliz com esse texto".
ResponderExcluirMe identifico com esse olhar para com as Artes em geral tanto quanto as Artes maiores e as Artes menores!
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